4 de March de 2021

DIÁRIO DE BORDO – Europa 15 anos do Trio

Não passo de um dublê de músico

Ainda assim, no começo deste 2013 em que o Trio Quintina festeja quinze anos de carreira, pude viver com os três rapazes – meus irmãos Gabriel e Gustavo e o Tiziu, que já é da família – uma aventura musical emocionante. Cruzei a ponte do Parlamento, em Londres, puxando um pesado saco com instrumentos e parafernália de palco no justo instante em que o Big Ben soava as doze badaladas de uma meia-noite congelante de março; no porão de um pub em Cambridge, vi uma pequena e embasbacada plateia local delirar de euforia e estranhamento diante de um choro de Jacob do Bandolim e de um samba entoado a plenas vozes: “Joga a chave, meu bem…”; tive a alucinação assustadoramente realista de um aperto de mão com George Harrison no Cavern (voz e sotaque idênticos ao ouvir meus elogios à apresentação de sua banda: “Thanks, mate. Take care”), e dali saímos para a noite fria, meio chuvosa, roucos de tanta cantoria com os Beatles, nós quatro: na intimidade dos apelidos, Bepe, Mógli, Tiziu e Mégui. Um quarteto em Liverpool. 

Foi divertido, para mim, posar de músico em turnê pela Inglaterra – dublê que sou. Mas, na manhã seguinte à noitada no Cavern, derrubado por uma gripe mortal e os já quase dez dias on the road, entreguei os pontos e não saí da cama do hotelzinho meia-boca, bem perto das Docas, onde nos hospedávamos por conta: o esquema oferecido ao Trio não incluía certos luxos. E no entanto, naquela manhã, lá foram os três para o calçadão do centro de Liverpool mandar seus choros e sambas.

Sem regalias, Gabriel, Gustavo e Tiziu, como diria Chico Buarque, vão na estrada há muitos anos. E quem ouvir esta coletânea da carreira do Trio e assistir ao belo presente que a acompanha – um show inédito num cenário soberbo da cidade natal dos rapazes, Curitiba – perceberá, aí, a integridade artística de três músicos de verdade; o talento de compositores que, embora jovens, colecionam várias joias no repertório próprio (para não falar da criatividade com que executam, na noite curitibana e mesmo em CD, o duplo “Ao Vivo Puro”, as canções de outros autores).

À primeira audição, esta seleta do Trio revela uma curiosa alternância entre fases mais animadas, rítmicas, e mais intimistas, melancólicas. Não à toa o critério de seleção e agrupamento das canções seguiu precisamente essa divisão, resultando em coletânea dupla composta por um disco de “lentas” e outro de “rápidas”. Mas percebe-se também uma clivagem na própria sequência dos quatro CDs autorais lançados até agora pelo grupo. Assim, a coletânea de “lentas” traz sobretudo material do primeiro e do terceiro álbuns, respectivamente A Caixinha Mágica (1999) e Pára-Dias de Chuva (2004); no disco de “rápidas”, predominam músicas de Balaio da Menina (2002) e Quintina Orquestra Trio (2009). Completa a seleção uma canção de CYRK (2010), DVD/espetáculo em que os temas, na maior parte, são também composições dos três músicos curitibanos.

Entre as “lentas”, a coletânea parte dos primórdios do Trio, com melodias delicadas de cantigas como “Uma Menina” e “Bruxinha” e letras fantasistas, em geral a cargo de Tiziu & parceiros, especialmente em “Cecília” (uma das mais belamente imaginativas, aqui na ótima versão de CYRK); avança para as baladas de autoria do guitarrista Gustavo, ora em temas francamente românticos, ingênuos à la Jovem Guarda, como “Um Coração”, ora em canções de amor rasgadas, caso de “Culpa”; e aporta na grande destreza musical do multi-instrumentista Gabriel em “Rara Ternura” (em que a destreza é sobretudo vocal), uma versatilidade emepebística que pode acomodar tanto o lado instrumental do aficionado do choro, em “Girassol” e “Vianen”, esta em coautoria com Tiziu, quanto certa faceta mais pop, como nos saborosos versos do refrão de “Ficou no Cais”: “Você vestida de preto é simplesmente linda/Me tira do sério, me deixa a boca aberta/Puxa o tapete no auge dos meus 23/Me dá um tombo, me faz voltar pros 16”.

O CD de “rápidas” é, pode-se dizer, um catálogo das qualidades musicais do Trio: na base, o violão seguro de Tiziu; nos detalhes de arranjo e nos solos, novamente os vastos recursos de Gabriel, um raro virtuose de instrumentos de sopro como a flauta (sua especialidade), o sax e o clarinete – mas o toque particular do som quintino parece ser mesmo a guitarra elétrica de Gustavo (não percam os riffs e solos de “Me Deixe” e “Belo Horizonte”, para ficar em apenas duas das minhas preferidas), também exímio cavaquinista (vide a divertida “Dedinho Nervoso”); a percussão afiada; por fim, a harmonia das vozes, cada uma bastante peculiar, afeita a certo tipo de composição (embora juntas funcionem igualmente muito bem) – e com que propriedade cada um dos compositores canta as próprias canções, o que nem sempre se ouve por aí. 

À variedade de vozes corresponde, portanto, um leque de estilos: Tiziu põe seu timbre suave – a voz mais refinada das três, diga-se – a serviço de melodias idem, temperadas por influência afro em canções mais recentes, como “Aruanda”; Gustavo é um compositor popular que, ao lado das já mencionadas baladas, transita bem no samba de roda e refrão, flertando com o pagode em letras de Martinho da Vila, como a de “A Forca”; Gabriel, por sua vez, compõe com sofisticação, nos passos de mestres da nossa música popular erudita (“Direção”, “Devaneios”). E os três também sabem o que fazem com as palavras, mas seria injusto não mencionar, nesse quesito, coautorias fundamentais de letristas como Helmuth Valesko (“Maldita” e a já citada “Cecília”) e Fabio Rigoni, parceiro de Gabriel em “O Samba é um Direito do Povo” e “Sebastião”, esta um dos destaques do DVD que completa este box comemorativo. 

E o que revela o DVD – registro de apresentação realizada no suntuoso Paço da Liberdade, em plena sala de atos do prédio que, início do século 20, nasceu como prefeitura de Curitiba – é, de novo, variedade. Logo de cara, duas ótimas baladas de Tiziu, de quem, mais adiante, ouvimos as emblemáticas Belo Horizonte/Balão Azul, típicas levadas suas. Em inspirada seleção de repertório, esse show especial traz ainda “Livre Arbítrio”, composição de Gustavo, de par com “Prova de Carinho”, de Adoniran Barbosa, provando, isso sim, que o Trio é também grande intérprete de sambas alheios. E, por fim, nova versão de um dos pontos altos de CYRK: a linda melodia de “Estudo para os Orixás” – ponto alto porque, no espetáculo original de 2010, com sua mistura de música e performance, é o momento em que se eleva sobre a cena um cavaquinho azul que pertenceu a nosso Vô Melim, clarinetista, líder de banda e sobrenome oculto dos irmãos Schwartz (somos, na verdade, Melim Schwartz). No sótão da velha casa, em Lages-SC, ficava trancado o depósito de instrumentos musicais. Menino, um dia espiei ali e vi o mesmo cavaquinho, futura herança; à sombra dela e no sopro do clarinete de noites antigas, meus irmãos se fizeram músicos.

E eu, este terceiro irmão? Infelizmente não passo mesmo de mero dublê. Mas permitam-me saudar, ainda que suspeitíssimo para isso, esta bela amostra da obra em progresso dos três quintinos, feita à base de financiamentos incertos, cachês suados, turnês às vezes mambembes, e por isso mesmo – para além de sua óbvia qualidade musical – ainda mais admirável.

Christian Schwartz

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